Artigo: Perigo de retrocesso: Covid-19 e as mulheres.

Em 1928, Virgínia Woolf escreveu o romance Orlando. No livro, Orlando tinha tudo o que um homem poderia querer, na época: título de nobreza, vasto patrimônio, carreira bem sucedida, até que, um dia, acordou como uma mulher. Pensou ele: “mesma pessoa, outro gênero”. Ledo engano: suas oportunidades e seus direitos mudaram drasticamente. Virgínia Woolf disse em uma palestra na Universidade de Cambridge, em 1929, que levaria um século para que houvesse igualdade entre homens e mulheres.

Sem dúvida, as mulheres conquistaram direitos e espaços nesses quase cem anos. No entanto, em termos de educação, segurança e oportunidades de trabalho, ainda não atingimos a tão esperada igualdade. O que vinha caminhando a passos lentos esbarrou no dia que o mundo parou.

A pandemia causada pelo vírus SARS-COV-2 produziu um reset mundial. Pela primeira vez na história, as três grandes  instituições sociais – família, educação e trabalho -, passaram a acontecer de forma simultânea e no mesmo lugar: dentro de casa.

Com foco na mulher no mercado de trabalho e na política, algumas manchetes recentes chamaram à atenção: revista Fortune 500, no dia 16 de maio (“Fortune 500 tem mais mulheres CEOs do que nunca”); jornal New York Times, no dia 15 de maio,(“Por que as nações lideradas por mulheres estão se saindo melhores na luta contra o Covid-19? Novo estilo de liderança é promissor em uma nova era de ameaças globais”).

Ao mesmo tempo, na corrente oposta, matéria no The Guardian, em 29 de maio, destacava: “Crise gerada pelo Covid-19 pode levar mulheres a um retrocesso de décadas. Temor de que 50 anos de progresso possam ser revertidos, se o governo não intervir”. No mesmo sentido, a revista Inglesa, The Economist, “Crises tendem a reduzir desigualdade de gênero. Não no covid-19.” Enquanto acompanhamos notícias, de certa forma históricas e animadoras, sobre o êxito de mulheres nos mais altos cargos de liderança, outras apontam um cenário futuro muito preocupante. Rapidamente, se percebeu que a fratura

socioeconômica aprofundaria ainda mais a diferença entre os gêneros. Profissionais mais qualificadas estão sendo impactadas de forma e em ritmo diferente das que detêm menos qualificações. Executivas em cargos de liderança estão menos expostas a perder seus empregos. No entanto, por estarem mais sobrecarregadas, ficam suscetíveis a não serem promovidas, dada a consequente perda de produtividade. Um exemplo eloquente é que o número de artigos científicos publicados por mulheres caiu drasticamente, nos últimos três meses, enquanto o dos homens aumentou, reduzindo chances de trabalho ou bolsas de estudo para as mulheres no futuro.

Mais imediato, do número de desempregados na Europa e nos EUA, as mulheres compõem a maioria, seja por demissão ou por escolha. Dado que a mulher, em geral, ganha menos que o homem, quando o casal precisa decidir quem ficará com os filhos, a matemática resolve o problema. Para piorar o cenário, os setores nos quais mulheres tradicionalmente empreendem, como beleza, varejo, educação, enfermagem, eventos, para citar alguns, foram os mais afetados e os que mais terão dificuldade em se recuperar. Quanto menor o poder econômico da mulher, mais rápido elas estão sendo atingidas.

Sem escolas e asilos, como quase sempre são cuidadoras das crianças e dos idosos da família, as mulheres começaram a enfrentar diversos dilemas. Será que as mulheres correm o risco de perder o emprego e os espaços conquistados para se dedicar exclusivamente ao cuidado da família?

Angela Merkel, primeira ministra da Alemanha, já alertou para uma “retradicionalização” de papeis, insistindo que o parlamento alemão precisa agir. “Vou intervir com toda minha força para que isso não ocorra e para que homens e mulheres tenham os mesmos direitos” , assegurou.

Embora seja louvável seu esforço, é difícil esperar que outros governos pelo mundo façam o mesmo ou façam o que a sociedade deve fazer. Cobrar que empresas reafirmem seu compromisso com diversidade, igualdade e inclusão (apesar de abordar aqui apenas gênero, cabe o mesmo para raça) é essencial. Se a recuperação for focada exclusivamente em eficiência e lucro de curto prazo, sem um olhar cuidadoso para inclusão, corre-se o risco de deixar décadas de avanço no campo da igualdade para trás. O que seria péssimo para todos, inclusive para a própria sustentabilidade socioeconômica no longo prazo.

É preciso focar no aprendizado que pode ser extraído da experiência que virou do avesso a rotina corporativa como conhecíamos até 2020. A realidade provou que o modelo mais flexível de trabalho, com possibilidade de home office, funciona bem e pode conduzir uma parcela da sociedade a uma vida mais equilibrada e saudável. Um estudo de Stanford mostrou que reunião por videoconferência permite uma colaboração maior entre os times, trazendo mais igualdade. Nessa linha, tem se notado que as mulheres são menos interrompidas nesse tipo de reunião, incentivando seu maior engajamento.

As líderes de empresas e de países têm se destacado de forma excepcional nesta crise. Precisamos cuidar da nova geração de líderes. Porque, se não fizermos nada, possivelmente, não teremos mulheres no topo em 10 ou 20 anos. E foi tão difícil chegar até aqui! Mulheres que se orgulham de suas carreiras, se realizam empreendendo em seus negócios – para a evolução da nossa civilização – não podem parar.

Esperamos que a história mostre que Virginia Woolf estava certa: em 2029 as mulheres celebrarão conquistas relevantes em um ambiente mais igual e inclusivo. Depende da vigilância e cobrança de todos nós.  Já passou da hora de termos medo de Virginia Woolf.

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