Vivemos um momento de intensa transformação provocada pela pandemia do novo coronavírus. Para refletir sobre os impactos causados para a sociedade e, principalmente, para as mulheres, conversamos com Theo van der Loo, fundador e CEO na NatuScience e conselheiro na WILL, e Luana Génot, fundadora e diretora- executiva do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR).
De forma geral, quais serão os impactos da crise provocada pela pandemia do novo coronavírus?
Luana: Do ponto de vista social, desejo que haja uma profunda reflexão sobre o aprendizado desta odisseia. Interessante observar que, de certa forma, o vírus acabou unindo muita gente, mas não podemos romantizar ao ponto de dizer que estamos todos no mesmo barco. Sabemos que os efeitos não atingem a todas e todos da mesma maneira. Os recortes mais vulneráveis da sociedade tendem a ter suas situações mais agravadas e não me refro apenas ao recorte socioeconômico. Estamos falando da população negra e indígena, mulheres, PCDs, LGBTs – e ainda mais quando estes recortes se sobrepõem. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) aponta que a vulnerabilidade das mulheres negras ao desemprego é 50% maior do que a de mulheres brancas.
Theo: Há uma somatização relativa à precariedade e escassez dos recursos da saúde pública a curto prazo e, portanto, uma tendência de agravamento da vulnerabilidade socioeconômica nestes grupos, que terão mais dificuldade de se recuperar. A ajuda do Estado com certeza será decisiva, mas não podemos nem devemos colocar tudo no colo do Estado. Precisamos aproveitar este momento para desenvolver uma empatia ou compaixão coletiva e ajudar ao próximo, especialmente o mais necessitado de apoio, de forma incondicional.
Um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os custos financeiros e humanos da pandemia mostra que a crise pode empurrar meio bilhão de pessoas para a pobreza. Estes impactos serão mais sentidos pela população de baixa renda?
Luana: Com certeza. Vale lembrar que a população de baixa renda apresenta outros marcadores não menos importantes. No Brasil, os negros são quase 80% entre os mais pobres, segundo o Instituto Brasileiro de Geografa e Estatística (IBGE). Desta população, mais de 50% são mulheres. Outro dado relevante é que negros e negras ocupam 4,7% dos cargos executivos nas 500 maiores empresas brasileiras, sendo que mulheres negras ocupam apenas 0,4% no quadro executivo, de acordo com pesquisa do Instituto Ethos. Ao analisar esses recortes, percebemos a necessidade de desenvolver políticas públicas e privadas que deem conta de desigualdades raciais e sociais históricas que foram ainda mais agravadas pela pandemia. O ID_BR-Instituto Identidades do Brasil em parceria com a Faculdade Zumbi dos Palmares, a Empodera e Empregueafro produziram o estudo Saúde Financeira da Mulher Negra que ao entrevistar empreendedoras e profissionais negras atuantes dentro de empresas mapeou que entre 8 a cada 10 empreendedoras não tem reserva financeira e certamente estão mais sujeitas a quebrarem diante do pandemia. No âmbito econômico, quando somamos marcadores raciais aos sociais sabemos exatamente onde teremos os maiores efeitos da pandemia.
Theo: Além disso, a letalidade do coronavírus é maior entre negros, de acordo com reportagem da Revista Raça, com base em dados do Ministério da Saúde. A reportagem mostra que 67% dos brasileiros que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) são negros, e estes também são maioria dos pacientes com diabetes, tuberculose, hipertensão e doenças renais crônicas – condições agravantes para o desenvolvimento de quadros mais graves da COVID-19.
Os impactos econômicos serão maiores para as mulheres, pois elas ocupam 70% dos cargos nos setores social e de saúde em todo o mundo, segundo a ONU Mulheres, e a maioria é também mãe e responsável pela família. O que tem a dizer sobre isso?
Theo: Certamente, e esse cenário também se repete no Brasil. Hoje, existem mais de 465.000 médicos no País, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM). No ano 2000, cerca de 35% eram mulheres, mas, hoje, estima-se que 50% sejam do sexo feminino. Atualmente, as mulheres representam 57% dos médicos mais jovens e já são maioria no curso de Medicina. Elas também são maioria entre os profissionais de enfermagem. Em 2015, segundo o IBGE, a área de saúde compunha-se de 3,5 milhões de trabalhadores, dos quais cerca 50% atuavam na enfermagem e, deste grupo, quase 85% eram mulheres.
Luana: Levanto outro ponto relativo à área da saúde: quantas mulheres médicas estão em cargos de chefa nos hospitais ou no governo? Quantas são negras? Quantas pudemos ver e ouvir durante as coletivas de imprensa do governo, tanto federal, quanto estadual? Precisamos reconhecer que, apesar da enorme quantidade de mulheres atuando na área da saúde, esse setor continua com uma estrutura bastante machista e racista. Vimos já recentemente que países liderados por mulheres tiveram melhor desempenho no manejo do avanço da COVID-19. Nota-se também que todas as mencionadas eram brancas e não foram destacadas mulheres negras. Acredito que a liderança feminina é disruptiva e encontra caminhos diferentes da massa homogênea de homens brancos. É importante trazer à tona o assunto da liderança feminina na área da saúde, com todos os devidos recortes senão continuaremos sendo excludentes. A diversidade deveria ser um retrato no nosso País quando falamos de oportunidades, mas ainda não é.
Quais os impactos sociais para as mulheres, já que notícias do
mundo todo apontam para o aumento do número de casos de violência doméstica devido
ao isolamento social?
Theo: Com mais tempo em casa, muitas
vezes em espaços apertados, as mulheres ficam mais suscetíveis aos quadros de relacionamentos
abusivos que são agravados neste período, uma vez que o abusador está sempre
por perto.
Luana: Como mencionado anteriormente,
houve um agravamento de índices de vulnerabilidade que já tinham cor, raça,
orientação sexual e CEP. Há de se achar novas maneiras de prover formas para que
estas mulheres consigam ter orientação e apoio neste novo cenário que foi
agravado.
Como as empresas podem implementar iniciativas para minimizar estes impactos?
Luana: As empresas, sobretudo as maiores, têm responsabilidades que vão além de proteger seus funcionários da demissão em massa e proteger seu lucro e de seus acionistas. Elas também têm o papel de proteger a
sociedade, direcionando medidas específicas para seus diversos stakeholders, que compreendem acionistas e donos, mas igualmente funcionários e suas famílias, como também fornecedores.
Theo: No mundo capitalista em que vivemos, existe o risco de voltarmos ao piloto automático, ao capitalismo selvagem após a pandemia. Como será a nossa sociedade após esta experiência emocionalmente e financeiramente devastadora para muitos? Ter menos lucro ou ter prejuízo não é a mesma coisa. Não serão todas as empresas ou setores que estarão em crise após a pandemia. Sabemos que muitas delas, grandes ou pequenas, estão fazendo o máximo para evitar demissões. Além das empresas, pessoas físicas também podem demitir profissionais que atuam dentro dos lares. Espero que o bom senso associado a um forte tom de solidariedade e compaixão prevaleça. Até porque, ao demitirmos pessoas empregadas estamos, de fato, demitindo consumidores, que são justamente aqueles que irão reerguer a economia. Quanto menos demissões, mais rápida será a recuperação econômica.
Luana: Levanto outra preocupação: como ficará a inclusão e diversidade nas empresas após a pandemia? Muitas corporações fizeram avanços significativos, porém o Brasil está longe de ser uma nação mais justa e inclusiva e com menos desigualdade. Precisamos de todos os talentos para reerguer a economia. Nos últimos anos, aprendemos que inclusão e diversidade são diferenciais importantes para o sucesso das empresas, contudo corremos o risco de ouvir que estas questões não são prioridades neste momento, quando existem assuntos mais urgentes.
Theo: Vale aqui mais uma reflexão. Com certeza, as empresas não irão afrouxar suas medidas e ações relativas ao compliance e governança. Acredito que é importante tratar a questão da inclusão e diversidade com a mesma convicção, ou seja, um compliance social e moral. De que maneiras as empresas contribuem para o progresso da sociedade e do entorno onde atuam? Como as empresas vão incentivar políticas de inclusão, mesmo diante da crise? Afinal, é diante desses cenários que as empresas podem construir ou fortalecer suas reputações.
Luana: A sociedade poderá questionar: o que sua empresa fez pelas mulheres, pela população negra e pelos menos privilegiados quando estas populações mais precisavam de apoio? Esta pergunta permite enxergar quem pretende construir um cenário de ética, prosperidade e produtividade a longo prazo e quem o faz apenas superficialmente. A pandemia pode ser uma ótima oportunidade e bastante determinante para a construção e fortalecimento de posicionamentos sólidos, frente a causas que já são caras para o Brasil, há muito tempo.