ENTREVISTA – 5 PERGUNTAS | PALOMA LIMA

Ter consciência de seu lugar no mundo para, a partir daí, construir a própria narrativa, pode fazer toda a diferença para a carreira de um jovem talento, principalmente se esse profissional for uma mulher. Nossa entrevistada e conselheira da WILL, Paloma Lima, aprendeu desde cedo a ‘jogar o jogo’ de acordo com o código social vigente.

Sócia da área de Desenvolvimento e Financiamento de Projetos do escritório Pinheiro Guimarães, é graduada em Engenharia e Direito, pela USP; pós-graduada em Direito Administrativo pela FGV e Master of Laws na Stanford University Law School, California, EUA. Ao longo de mais de 20 anos de carreira, Paloma atuou em projetos de infraestrutura em diversos países da América Latina e também serviu como In-house counsel no Inter-American Development Bank (IDB) em Washington, EUA.

Confira as reflexões necessárias que a executiva compartilhou conosco!

1) Com mais de 20 anos de trajetória profissional, como você avalia a evolução de temas como liderança feminina e equidade de gêneros no país?

A questão da liderança feminina e da equidade de gênero tem recebido cada vez mais atenção em todo o mundo e muita coisa mudou nas últimas décadas. Iniciei a minha trajetória profissional com uma formação de engenharia naval, na Poli-USP, no início da década de 90, uma época em que mulheres ainda eram proibidas de prestar vestibular para outras faculdades prestigiadas de engenharia, como o ITA e o IME, e não havia muitas opções. Isso só mudou no final da década de 90. Ainda hoje, olho para trás e acho tudo muito estranho. Três décadas se passaram, mas a sensação que tenho é que, de algum modo, muito disso ainda está presente de forma transmutada. Mesmo tão jovem, ter contato direto com um cerceamento de oportunidade tão flagrante e injustificado (mas considerado normal na época) não deixou de ser impactante. E, de algum modo, despertou em mim uma consciência muito clara de que o trabalho a ser feito seria em dobro, assim como a resiliência e a determinação, se quisesse conquistar um papel de destaque.

A transição para carreira jurídica também não foi fácil, mesmo tendo cursado outra faculdade prestigiada na USP, o escrutínio foi grande. Em entrevistas de emprego cheguei a ouvir críticas duras como “você não sabe o que quer da vida”, ser taxada de estranha, indecisa e passar por muitas rejeições por algo que deveria ser, na prática, um diferencial. Muito poucos levam em conta a realidade das condições de emprego e a limitação nas oportunidades de trabalho que levam uma mulher a buscar outra profissão. A partir daí, decidi suprimir a engenharia do currículo, simplificar a vida e seguir em frente. E aprendi outra lição: a mulher tem que se adaptar mais (e mais rápido) à realidade profissional e ao discurso do seu tempo para ter alguma chance. Aprender a jogar o jogo, sem se perder de si mesma e da sua visão como mulher. O ônus da prova também está invertido, ou subvertido: o homem tem
potencial, já a mulher tem que se provar, quantas vezes forem necessárias. E foi o que decidi fazer, sem titubear.

A realidade atual é diferente, muita coisa mudou, mas há ainda enormes desafios a serem enfrentados. A participação das mulheres em cargos de liderança ainda é desproporcionalmente baixa em comparação aos homens, e elas muitas vezes enfrentam obstáculos e preconceitos baseados puramente em narrativas de gênero e estereótipos. Quantas vezes não ouvimos coisas como ‘as mulheres não possuem interesse ou habilidade para negociar’ ou que ‘falta autoconfiança às mulheres’ e ‘disposição para correr riscos’. No entanto, o que não fica claro para todos é que o contexto é o fator determinante para as principais desigualdades de gênero no ambiente de trabalho. Ou seja, as diferenças não estão enraizadas em caraterísticas de gênero e estereótipos fixos de homem ou mulher, mas decorrem de estruturas organizacionais, práticas corporativas e padrões de interação que posicionam homens e mulheres de forma distinta, criando experiências sistematicamente diferentes para ambos.

É preciso ter uma consciência muito mais clara que o grau em que os profissionais podem prosperar e ter sucesso em suas carreiras também depende do tipo de oportunidades e tratamento que recebem. Em geral, as mulheres no ambiente de trabalho têm menor acesso ou estão desconectadas das redes de informação, têm menos oportunidades de networking e de cultivar relacionamentos informais com colegas mais experientes e, portanto, nãotêm acesso ao conhecimento e aos recursos que poderiam ajudá-las a conquistar clientes, fazer negócios, desenvolver projetos, expor sua performance e avançar nas carreiras. As mulheres são também mais julgadas e penalizadas, de forma desproporcionalmente severas, por deficiências que são, em geral, despercebidas ou perdoáveis nos homens.

Ao operar nessas condições, elas têm maior probabilidade de enfrentar estereótipos de gênero, como: “mulheres não se posicionam”, “não abraçam oportunidades” ou “não assumem riscos”. No entanto, é sempre mais fácil assumir que falta confiança às mulheres e não que lhes falte informações relevantes ou acesso a oportunidades. Enfatizar as diferenças de gênero e alimentar suposições e preconceitos baseados em estereótipos aumenta o risco de torná-los naturais e inevitáveis. Isso, infelizmente, é algo muito perverso e insidioso que continua vivo.

Outro exemplo muito comum: se um homem fala com frequência e de forma enfática em uma reunião, em geral, se conclui que ele é assertivo e confiante, pouco se leva em conta uma explicação situacional, de que ele possa ser constantemente incentivado e elogiado por suas contribuições. Da mesma forma, se uma mulher é silenciosa em uma reunião, a explicação mais fácil é que ela é insegura, não sabe ou não consegue se posicionar. É necessária uma energia cognitiva maior para construir uma explicação alternativa, como o fato de ela estar acostumada a ser interrompida, ignorada ou não ouvida quando fala. Além disso, as mulheres estão sujeitas a um escrutínio mais rigoroso, o que significa que seus erros e eventuais falhas são examinados de perto e punidos com maior severidade.
É natural que, nessas condições, as pessoas tenham menos disposição para se manifestar em reuniões, especialmente se sentem que não têm qualquer apoio.

Portanto, as mulheres muitas vezes sentem que precisam ter 100% de certeza de suas ideias antes de se aventurarem a compartilhá-las. É lógico que pessoas cujos erros são mais propensos a serem usados contra elas também terão menos inclinação a se expor a riscos. Ou seja, quando vemos homens e mulheres se comportando de maneiras estereotipadas, há sempre essa tendência de fazer a suposição mais simples, de que o comportamento reflete quem eles são, em vez de considerar a situação em que se encontram e as ferramentas que dispõem. Talvez seja essa a sensação, meio doce e meio amarga, tão distante e ainda tão presente, de olhar para trás e sentir que muita coisa da realidade do início da minha carreira mudou, mas ainda não se transformou completamente.

2) A Advocacia é conhecida pelo alto número de mulheres, não necessariamente ocupando a liderança. Você chegou lá e atuando em áreas majoritariamente masculinas. Como foi trilhar esse caminho?

Foi sem dúvida um caminho duro, de muitas dores e sacrifícios. Como a maioria das mulheres, temos que nos esforçar mais para provar que somos competentes e capazes de desempenhar atividades que tradicionalmente são atribuídas aos homens. Precisamos nos destacar em dobro para romper a desconfiança prévia, sobretudo em áreas em que o raciocínio lógico, analítico e estruturado é muito exigido. Creio que o meu background e inclinação natural para Exatas, me encaminhou naturalmente para a área de projetos e infraestrutura, na qual construí minha prática e pude dar vazão ao que de melhor tenho a contribuir. É importante encontrar o seu propósito, e cultiválo com prazer e dedicação. Ao longo de mais de 20 anos de carreira, no Brasil e no exterior, já fiz projetos em praticamente todos os setores de infraestrutura.

Fui para Stanford, na Califórnia, fazer o mestrado. Trabalhei em um banco multilateral em Washington, por cerca de 5 anos, e lá também tive experiências incríveis e transformadoras trabalhando com projetos em outros países, como Jamaica, República Dominicana, Equador, Panamá, México e Nicarágua – nesse último, inclusive, fiz um projeto de energia geotérmica, possível em poucos lugares do mundo. Conheci muita gente, aprendi idiomas, vivi outras culturas, me abri a formas diferentes de pensar e enxergar as coisas e cultivo uma curiosidade e interesses tão variados que não cabem em uma vida só. Sempre trabalhei e me dediquei muito e aprendi a me expor constantemente a novos desafios e experiências, que, sem dúvida, me ajudaram a construir um repertório variado e conhecimento sólido, profundo, com um olhar mais dinâmico, e tudo isso foi me destacando na profissão.

Atraio projetos grandes e complexos e construí uma reputação entre clientes e colegas como ‘problem solver’. Ao contrário dos estereótipos associados às mulheres, gosto muito de desafios e não sou avessa à riscos. Aprendi a ver as dores e cicatrizes da minha trajetória como troféus, como símbolos de luta e conquista. E isso nos impulsiona a ir além. De todo modo, na realidade da mulher é preciso também saber que mesmo o trabalho árduo e incansável e todo o preparo e qualificação, muitas vezes, não são suficientes. Para se chegar às posições de liderança é preciso aprender a se posicionar, a não ter medo de pedir, de perguntar, de sentar no meio da mesa e liderar discussões e, o mais importante, aprender a não duvidar nunca do seu próprio valor, da sua voz e do que ela tem a dizer. Isso é uma construção e leva anos. Penso que é o que Simone de Beauvoir quis dizer com uma de suas frases mais conhecidas: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.

3) Quais foram os principais desafios superou ao longo da carreira? Precisou abrir mão de aspectos pessoais?

Como na carreira da maioria das mulheres, os desafios foram muitos e variados. Em primeiro lugar, é preciso ser muito resiliente e encontrar uma força interior que vai além das palavras para não se deixar abater, amargurar e poder seguir em frente, mesmo com todos os sinais contrários da realidade. A negação da mulher está no dia a dia, nas dificuldades básicas de acesso à oportunidades, à informação, o que nos coloca sempre em situação de desvantagem.

A voz feminina é constantemente calada, interrompida ou ignorada. E, ainda assim, mesmo com a superação, é preciso se provar seguidas vezes, sem descanso, enquanto se assiste aos pares do sexo masculino ascenderem profissionalmente pelo mero potencial, perpetuando o círculo vicioso. São as constantes barreiras e estereótipos de gênero que as mulheres vivenciam no trabalho e que as coloca em lugares muito diferentes dos homens. Isso é um desafio imenso que requer superação diária, sem trégua. Se a mulher é competente e sabe colocar a sua opinião de maneira firme e confiante, é considerada antipática, arrogante, autoritária. Mas se fica calada, não tem opinião. O julgamento sempre existe, não importa o que se faça.

Eu sempre fui uma pessoa leve, doce e divertida, gosto de conversar e faço amigos com facilidade. Mas quando se conquista uma posição de liderança e uma reputação de competência e destaque em uma área de alta performance, atrai-se também muita hostilidade e julgamentos ainda mais cruéis. Como muitas mulheres, já tive de enfrentar muitas agressões e brutalidade durante minha carreira. É muito importante também que alguns homens possam internalizar a noção de que não há nada humilhante em aceitar a expertise, o sucesso e autoridade de uma mulher que contribui de forma significativa para a sociedade.

Em paralelo, também tive que renunciar a muitos aspectos pessoais para seguir esse caminho. Optei por ter uma vida independente para ter mobilidade, explorar minha visão como mulher e ter tempo de dedicação à carreira. Não sou casada, não tenho filhos e sei que isso poderia ter alterado a minha trajetória, com seus prós e contras. Já mudei de cidade e de país muitas vezes, viajo muito a trabalho, assumi sempre muitas responsabilidades e sempre estive aberta a novos desafios. Foi uma escolha, dentro de um contexto e de uma época. Fui muito criticada, mas não me arrependo e acredito que a equidade também envolve o direito de todas as mulheres poderem fazer suas próprias escolhas livremente e vivê-las com convicção. Demorou um tempo para que eu pudesse entender que não precisaria me adequar aos estereótipos para ser uma mulher em toda a sua plenitude. Continuo acreditando que, mesmo com todas as barreiras e dificuldades, estamos avançando e a mulher pode ser tudo o que quiser ser: mãe, esposa, profissional de sucesso, líder, formadora de opinião, assertiva e acolhedora, tudo ao mesmo tempo. Parece um pensamento utópico, mas prefiro ver como um objetivo a ser alcançado. Um objetivo de todos nós.

Se pensarmos bem, os desejos e desafios de homens e mulheres em relação ao equilíbrio entre trabalho e família são surpreendentemente semelhantes. É o que eles vivenciam no trabalho que os coloca em lugares muito diferentes. Da minha parte, eu continuo querendo ser várias coisas e sigo cultivando a minha visão abrangente de ser mulher. Depois do falecimento da minha cunhada, há 3 anos, assumi a guarda de um dos meus sobrinhos, que mora comigo e com quem aprendo e me divirto todos os dias. Aprendi a ser mãe sem ter sido mãe, estou mais próxima da minha família e do meu único irmão, que sempre foi o meu grande amigo. Toco violão, canto, escrevo e sigo forte e feliz, trabalhando como sempre. Olhando retrospectivamente para a minha trajetória, posso dizer que me transformei na mulher que sempre quis ser.

4) Na sua visão, quais são os principais gargalos para o Brasil avançar na agenda de diversidade e inclusão?

Não vamos atingir a equidade de gênero enquanto não houver uma verdadeira conscientização e ações práticas efetivas para resolver o problema ou pelo menos nivelar melhor o campo entre homens e mulheres. O Brasil é um país ainda cheio de outras tantas desigualdades sociais, de raça e preconceitos que aprofundam ainda mais o problema. É preciso que as empresas, a mídia, os governos, as famílias, as instituições e cada um de nós adote uma abordagem mais inquisitiva, rejeitando antigos modelos e paradigmas, buscando um entendimento mais embasado em evidências de como as mulheres vivenciam o ambiente de trabalho e, em seguida, criando as condições que aumentam as perspectivas de sucesso das mulheres. Essa abordagem implica no reconhecimento de que o problema não está nas deficiências das mulheres, mas sim no menor acesso às condições que potencializam a autoconfiança, a independência e o sucesso. Se realmente queremos reduzir o viés subjacente, muitas vezes até inconsciente, que nos torna relutantes em conceder posições de liderança e autoridade às mulheres mais do que aos homens, devemos tornar mais comum e menos chocante vê-las em posições de autoridade e de liderança. E levar isso para frente. Já está acontecendo.

Sempre me recordo de uma história que Madeleine Albright, imigrante tcheca que se tornou a primeira secretária de Estado da história dos EUA, contava em suas entrevistas. Ao conversar com sua neta de 7 anos sobre a importância de abrir o caminho para mulheres ocuparem funções de autoridade e o caminho pavimentado por ela mesma para que assumissem o principal cargo diplomático dos Estados Unidos, a garota teria comentado: “Mas apenas meninas são secretárias de Estado”. É claro, ela estava falando a verdade do seu ponto de vista: na sua vida, ela tinha visto Condoleezza Rice e Hillary Clinton sucederem sua avó. O mundo parecia ser assim e era muito natural. Isso é bonito de ver. Eliminar esse problema por completo pode levar gerações, mas pode ser feito. Precisamos começar já.

Acredito muito nas pequenas ações e no seu efeito propagador. O menor gesto que demonstre essa consciência clara e atenue as lutas e dores do dia a dia da mulher já é uma vitória. Cada vez que ignoramos o que uma mulher diz, olhamos por cima de seu ombro em busca de alguém mais interessante para falar ou nos dirigimos ao homem ao seu lado e nos recusamos a incluí-la na conversa, estamos explicitamente demonstrando essa suposição cruel e enviesada de que as mulheres são menos interessantes que os homens e que suas opiniões são menos importantes e valiosas. Isso é feito muitas vezes de forma inconsciente, o que, por isso mesmo, torna o problema algo tão perverso e insidioso, que corrói por dentro e vai minando o campo de atuação da mulher até que ela desista, ainda se culpando por se sentir impotente.

Ao avaliarmos a capacidade de uma mulher, podemos nos perguntar se pensaríamos o mesmo se ela fosse um homem. Ou então, será que ouvimos ativamente e com atenção as mulheres, assim como fazemos com os homens? Podemos observar com mais atenção se interrompemos mais as mulheres do que os homens, se as questionamos mais refletir sobre o motivo. Podemos recompensar o trabalho árduo e sério, o preparo e a atenção aos detalhes mais do que a autopromoção vazia. Essa consciência prática e direta da realidade, dos padrões de interação e do que as mulheres vivenciam todos os dias no trabalho é que pode começar a mudar as coisas.

5) O que você gostaria de compartilhar com mulheres que estão iniciando suas vidas profissionais?

Eu gostaria de dizer que não deixem de acreditar na própria força e capacidade de realização. É preciso parar de confundir confiança com competência. Não devemos presumir que o homem com a voz mais alta na sala sabe do que está falando e assumir que a mulher em silêncio não tenha nada a dizer. Muitas vezes são as mulheres que têm as ideias mais criativas e poderosas a contribuir. E se chegou até aqui, mesmo com todos os desafios e adversidades, é porque tem estofo e tenacidade. Portanto, é preciso não cair na armadilha da autocrítica severa e da dúvida constante em si mesma. Aceitar desafios, focar na ação prática, estratégica e direcionada, ajuda a se libertar dos próprios medos e sair do próprio pensamento. Buscar feedback claro e objetivo de quem se confia também ajuda a acelerar a carreira, a ganhar perspectiva e a corrigir ou implementar as ações necessárias. Na maioria das vezes, mulheres recebem feedback vagos que, em geral, tendem a estar mais relacionados à sua personalidade do que ao seu desempenho. Tomar consciência desse e de outros vieses e buscar ativamente por ações práticas para neutralizá-los, por mais exaustivo e doloroso que muitas vezes seja, é também transformador. É uma forma de inspirar outras mulheres, desenvolver um olhar crítico da realidade e assumir o controle da narrativa.

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