ENTREVISTA – BOAS PRÁTICAS | CLARISSA SADOCK

As mulheres têm conquistado espaço e protagonismo no ambiente profissional em muitas áreas que antes eram dominadas, quase exclusivamente, por homens. À frente da operação da AES Brasil, empresa geradora de energia a partir de fontes 100% renováveis, a CEO Clarissa Saddock revela sua trajetória profissional até à liderança e compartilha iniciativas que vêm implementando na companhia para fomentar a especialização e ampliar a participação de mulheres em atividades técnicas no setor. Entre os projetos está um dos orgulhos da companhia, a recém- inaugurada planta eólica de Tucano, na Bahia, operada em sua totalidade por mão de obra feminina.

Sua carreira foi forjada em áreas conhecidas por serem ambientes majoritariamente masculinos. Como foi o seu caminho até aqui?

Essa pergunta é muito engraçada, sobre ambientes majoritariamente masculinos. Acho que, de alguma maneira, a gente se acostuma ou se acostumava com isso, achava normal. Eu fiz faculdade de Economia e era um ambiente também bastante masculino. Levei um tempo para entender que aquilo não era normal, mas era a realidade e aprendi a lidar com a situação da melhor maneira possível. Há 27 anos, não se falava sobre isso. Com o tempo, a gente percebe coisas como: eu sou a única mulher nessa reunião. A consciência foi acontecendo ao longo desse período, não foi uma coisa que chamou a atenção de imediato não.

Essa percepção se ampliou à proporção que sua carreira foi progredindo rumo à liderança? Temos mais mulheres na base do que ascendendo na carreira?

Olhando para cima, a desigualdade sempre foi maior. Quando atuei como estagiária e analista, tinha muitos pares mulheres e, quando olhava para a diretoria e gerência, já era um ambiente mais masculino. Quando eu entrei na AES, há 17 anos, a minha diretora e a vice-presidente eram mulheres. Foi interessante ter uma experiência, dentro da área financeira, com presenças femininas relevantes. Independente da companhia como um todo, na época, ainda ter maior presença masculina, na minha linha direta, eu tive duas chefes mulheres.

Olhando agora para esse passado, você percebe que a empresa já tinha um diferencial para ter essas mulheres em cargos de liderança?

Eu acredito que tinha sim, mas não era algo programado. Atualmente, se fala desse assunto de uma forma mais aberta e tratamos disso, falamos muito sobre viés inconsciente, uma coisa que não se falava, e também sobre como podemos sair dessas armadilhas e trazer mais diversidade, não só com mulheres, mas diversidade como um todo, que é super importante. Eu gosto sempre de trazer o lado objetivo na discussão de diversidade, a importância de ter pessoas pensando diferente e como isso agrega ao negócio. No setor elétrico, por exemplo, a gente vive hoje uma realidade muito diferente de 18 anos atrás. A gente não falava de cliente, era muito contrato regulado. Hoje, fala-se muito sobre o cliente e como trazer o produto que ele precisa. E a diversidade é fundamental para que a empresa pense em novos ângulos, em novos aspectos.

Agora que você está na cadeira de CEO, como sua experiência pessoal contribui para a diversidade e para a equidade de gênero?

Acho muito importante falar abertamente sobre os assuntos, com naturalidade. O setor elétrico é muito focado em segurança, com uma obsessão pelo tema, que precisa haver, pelos riscos que ele envolve. O que aprendemos com relação à segurança é que é preciso falar sobre isso, com recorrência, para não deixar ninguém baixar a guarda. É muito perigoso você achar que já sabe tudo e que não precisa fazer todos os procedimentos. Então, eu acredito que com diversidade não é muito diferente disso. A gente tem que falar. Mas também não adianta só falar, tem que ter meta. É uma combinação entre falar e ter metas claras, objetivas. Na AES, nós implementamos o que chamamos de contrato de gestão, com metas individuais para os gestores, e temos uma específica para a diversidade feminina. Decidimos focar em um aspecto, porque é melhor ter uma meta clara do que ter 40 e não ficar perdido. E aí, percebemos que temos situações diferentes. No escritório, nas áreas de apoio (comercial, financeiro, jurídico), precisamos trabalhar na questão da hierarquia.

Nos níveis de gerente há equilíbrio, mas quando observamos a diretoria, o corpo é majoritariamente masculino. A questão, então, é como podemos formar mais mulheres e trazê-las para as oportunidades.

Agora, quando a gente olha a operação, o cenário é completamente diferente. Há 3 anos, nos deparamos com um time operacional 99% masculino. Como mudar essa situação? Quando se fala de operação, trata-se de um time que fica na companhia por 20, 30 anos. Pessoas altamente qualificadas e com conhecimentos específicos. Não queremos perder esse know-how para fazer uma troca. Obviamente, todo ano há pessoas se aposentando e outras sendo contratadas, mas não se ganha ritmo nisso. Então, estamos usando as vagas novas, o crescimento da companhia para fazer a diferença. Montamos um time agora 100% feminino para operar a planta eólica em Tucano. Aí está o que eu falo, não é só conversar, tem que ter meta, tem que se programar, como a gente fez.

Decidimos que queríamos ter um time operando o parque eólico de Tucano com essa força feminina. Como é que eu vou montar esse time? Encontramos mulheres no mercado, da mesma forma que encontramos homens, formadas em Engenharia, com pós-graduação. Porém, com o know-how técnico do setor eólico, a gente tem que ajudar a formar, independente do gênero, é uma experiência específica. Montamos uma turma grande com o SENAI, com foco em mulheres, e estamos contratando metade dela. Não estamos só formando pessoas para trabalhar para a AES, mas também deixando um legado no estado da Bahia, que é um mercado muito promissor para o mercado de energia eólica.

Os homens representavam 99% dos contratados na operação. Com a chegada dessas mulheres, vocês precisaram fazer algum trabalho de preparação para eles, que já dominavam o ambiente?

Temos um programa, sim, e esse é um ponto muito importante. Não é só o banheiro que tem que estar preparado, é o ambiente como um todo. Lá atrás, quando tínhamos distribuidora de energia, tentamos fazer um programa para mulheres eletricistas e muitas que entraram, saíram por não se sentirem acolhidas. Ficou a experiência para fazer melhor, agora. Essa convivência exige uma conversa, um aprendizado, mas eu vejo que hoje em dia as pessoas estão muito mais abertas, muito mais disponíveis para ter esse tipo de discussão. No mínimo, as pessoas têm vergonha de falar certas coisas ou admitir que não gostam da ideia. Mesmo entre os mais resistentes, eu acredito que já conquistamos algo. A própria pandemia acelerou muito essa agenda ESG como um todo, e tem muita gente querendo trabalhar nisso. São homens que estão na operação e que têm filhas; são pessoas maduras, que entendem a necessidade. Particularmente, acho importante trazer esse outro lado, de pessoas que pensam diferente, com opiniões
diferentes.

Trabalhamos muito esse viés, do valor, não só para a sociedade, mas para a companhia. Quanto mais crescermos, mais oportunidade todo mundo tem para crescer. E a diversidade traz isso: cabeças novas para ajudar a pensar

A sociedade evoluiu. Há coisas que, se fossem ditas há alguns anos, talvez todos concordassem e, agora, a sociedade já não aceita. Que desafios e aprendizados trazem de experiências passadas?

Acredito que os aprendizados, muitas vezes, estão em coisas simples, como ouvir as pessoas. Há 10, 15 anos, muitas decisões vinham do topo da organização para serem implementadas, sem ‘trocar uma ideia’ com o time. Uma prática que temos é de fazer grupos de estudo, colocar as pessoas para trabalhar junto com a gente e pensar junto. Às vezes, criamos realidades e necessidades, com base na nossa vivência, e elas não representam necessariamente o que precisa ser feito de fato.

Muitas vezes, as coisas são simples, mas é difícil as pessoas refletirem antes de tomar a decisão: peraí, vamos ver se isso faz sentido? Vamos conversar? No aspecto de diversidade, especificamente, montamos grupos para tratar do tema, mas com o patrocínio da alta administração, pois sem esse suporte esses assuntos não andam. Tem que ter o respaldo de alguém sênior da organização, mas tem que ter a mistura. De novo, e quando se fala em mistura aqui, é da diversidade que a gente está falando, são pessoas com níveis hierárquicos diferentes e com vivências diferentes dentro da organização.

Falando sobre a agenda ESG, há muito ‘blá blá blá’, mas eu acredito que tem cada vez menos pessoas ‘comprando’ isso.. Dois anos atrás, quando começou a pandemia, ESG era uma sigla restrita a um número pequeno de pessoas que sabiam o que significava. Percebe-se até pelos clientes que chegavam, querendo a energia renovável. Era acertar a compra da energia renovável e pronto. Atualmente, as conversas se dão em outro nível. O que se quer saber é como a empresa está lidando com as comunidades em que está construindo as plantas, é outro checklist. Vejo, de fato, um amadurecimento na sociedade e uma exigência diferente das nossas contrapartidas.

A AES tem outras iniciativas voltadas para a equidade de gênero e/ou diversidade? Existe algum programa específico de formação para líderes mulheres?

Foram criadas metas para os líderes e tivemos um resultado fantástico, no ano passado. Tínhamos uma meta de aumentar em 15% o quadro de colaboradoras, naquele momento, e colocamos o desafio de candidatas mulheres em todos os processos finais de recrutamento. Em vez de aumentar em 15%, tivemos um aumento de 32% no quadro, como um todo. Foi um momento de crescimento da companhia, o que contribuiu para esse processo, e na liderança, a gente conseguiu um crescimento de 29%. Então, foi o esforço de valorizar os talentos internos dentro da organização e de trazer novos talentos. Sem complicação, conseguimos superar em muito a nossa meta. Eu acho que, muitas vezes, falta organização, falta uma liderança. Isso é uma filosofia AES, não é a Clarissa sozinha, é uma filosofia da AES no mundo todo de ter esse foco em atuar nas três letrinhas do ESG.

O que você diria para as jovens que estão iniciando a carreira agora e entrando no mercado de trabalho e quais conselhos gostaria de compartilhar com outros líderes que querem trazer iniciativas de equidade e diversidade
para suas empresas?

Para quem está entrando, eu diria que, hoje em dia, ser diferente é um diferencial. A gente passou da fase em que ser diferente era um problema. Atualmente, para entrar no negócio trazendo uma visão diferente e tendo uma voz ativa é fundamental ser e pensar de forma diferente. Obviamente, há que se encontrar o local que valorize a opinião. Um dos fatores que levam ao crescimento profissional dentro da AES é o funcionário ter uma opinião, ser notado e fazer diferença, mesmo que a pessoa discorde de algumas situações. Isso não é visto como um problema, e sim como contribuição. Então, traga esse diferencial com alegria, porque eu acredito que esse é o grande valor que as novas pessoas têm dentro de uma organização. O ponto principal é esse: use sua visão diferente como seu maior ativo e ache uma empresa que tenha propósitos e valores alinhados com os seus.

Olhando para o lado das empresas, primeiramente, estamos com as portas abertas para trocar experiências e conversar. Acho muito importante aprender com os outros. Esse é um caminho sem volta, quem ainda não abriu essa porta, precisa fazê-lo com urgência, porque está correndo risco de que ser ultrapassado pelos seus correntes. Esse tema não é mais novidade e sim uma exigência, que as pessoas têm nas suas vidas. Antigamente, as empresas não se posicionavam, tentavam se manter de uma forma mais neutra, mas a sociedade já não permite essa ausência de posicionamento, está todo mundo esperando que a sua empresa se posicione, de alguma forma.

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